Seu primeiro brinquedo foi uma panela. Pequeno, vivia agarrado na saia da mãe, frente ao fogão, a pia, as tabuas, facas e utensílios. – Mãe, posso corta uma salsinha? Mãe, posso picar uma cebola? e a mãe dava restos para satisfazer o desejo do mestre cuca mirim. Quando ia brincar com outras crianças, ele mesmo escolhia: Vou ser o cozinheiro da tropa. Sumia com os garfos e facas de brinquedo das irmas, que usava para picar folhas e insetos mortos. A medida que foi crescendo, foi aprimorando seu gosto, seu conhecimento. Quando ia viajar com o pais e os tios, ficava colado junto àqueles que cozinhavam. Carne, salada, massa, feijão e arroz, tudo aquilo ele foi olhando e memorizando. Primeiro o óleo, cebola, alho, dá uma boa suada, coloca a carne, tempera um pouco, deixa ela soltar caldo, se cozer, põe o arroz, água, temperos e acerta o sal no final. Aos 10, o dono de uma lanchonete perto de casa chamou ele para ficar no balcão, contudo a ânsia de estar no calor do 4×4 de azulejos brancos era maior do que qualquer coisa. Lavava louça, fazia sanduíches, limpava os vegetais, descongelava a carne. Não ligava tanto para o estudo, apesar dos tapas do pai e dos puxões de orelha da mãe. Queria mesmo era a chaira, o chinoá, o fouet, as facas, as tábuas, a cozinha. Os lápis, cadernos, réguas, compassos, borrachas e apontadores ele deixava para os outros.

Aos 16, foi contratado, meio que nas coxas, por um restaurante. Já tinha conhecimento de fundos e caldos muito maior que os que trabalhavam junto a ele. O restaurante em pouco tempo se tornou pequeno. Absorvia tudo: como abrir, como estripar, limpar, descascar camarão, ostra, lagosta, tainha, linguado, congrio, salmão. Quando podia, trabalhava como garçom também. Aproveitava e bebericava um pouco, se soltava para depois do trabalho ir namorar “as meninas órfãs” dos bailões da vida. O restaurante, se pudesse, tornaria-se o lar definitivo. Dormiria no estoque, faria das caixas sua cama, do papelão sua coberta, dos sacos de arroz seu travesseiro. Estava obcecado, fascinado por aquele mundo. Quando chegou o Natal foi ligeiro: um estojo de facas. E só. Foi prontamente atendido. Nas festas de família, ele fazia o cardápio. Casamentos, aniversários, bodas dos avós, dos tios, tudo ele supervisionava. Escolhia, comprava, fazia e limpava. Aos 18 entrou numa escola de gastronomia. Era destaque na classe. Com maestria e desenvoltura, praticamente dava aula com os professores, espantados com o aluno, uma “avis rara” em meio aqueles que aprendiam como fritar um ovo, desossar um frango. Os concursos promovidos já sabiam que o vencedor prontamente estava decretado. Um professor lhe indicou para trabalhar em um bom restaurante da cidade e ele foi, com brilho nos olhos. Entrava uma hora antes, saia uma hora depois. O chef foi gostando dele, os companheiros nem tanto. Cozinha é um lugar de disputa constante, inveja freqüente, dizia o mestre ao pupilo.

Coisas sumiam, panelas queimavam, receitas não davam certo, a cobrança era indevida. Um falatório aqui, uma intriga ali e ele não ficou por 6 meses, apesar da vontade e do talento nato. Ao chef só restou o muito obrigado, mas naquele ambiente ele sabia que não haveria progresso. Ficou um tempo desempregado, fazia alguns freelancers e por onde passava era só elogios. Mais um empreguinho de 2 meses e abandonou para a conclusão do curso. Trabalhou nesse, dizia, para acalmar as mãos com as queimaduras do cabo das panelas. Se formou no curso com destaque, conseguindo uma bolsa de 1 ano para estudar fora. Foi uma festa só, pagou três grades de cerveja para os amigos e para a família. Bebia pouco, mas naquele momento o pão líquido entrou como água. Dois dias depois continuava com ressaca e ao embarcar no avião o estômago mantinha o detonador acionado. Europa foi o destino. Na França, estudava de dia, trabalhava de noite. Não tinha a mínima noção da língua, iria aprendendo as poucos, mas quando os gestos diziam o que tinha que fazer, fazia com perfeição. E sempre com uma dose do Cognac usado na flambagem. Era uma máquina, um forno combinado com pernas e braços. A cozinha estava se tornando puxada, apesar da juventude, o corpo muitas vezes não aguentava. A bebida era um modo de descontração, mas precisava ficar acordado, atento no meio de tantos perigos. Fritadeiras, chapas, fogo, água quente, fria, piso molhado. Um Steward colombiano lhe apresentou um pó branco, que ele sabia que muitos ali usavam, mas sempre por debaixo dos panos de prato. Na câmara fria, junto a cortes e costelas, fez seu primeiro uso.

Foi para a Itália, o mundo das massas. Das pizzas as lasagnas, dos tortelonnes aos raviolis, foi aprendendo como era feito, ovo por ovo, farinha por farinha, vinho por vinho. Aquela vida da cozinha era uma diversão para ele. Fazia o que amava, comia o que amava e bebia o que amava. Muito dos três. Estava percebendo a mudança de peso, mas nada que incomodasse muito. Conseguiu uma vaga, por intermédio dum professor, para trabalhar numa trattoria em Napoles. Pesto, bolonhesa, limão siciliano, molhos que lhe enchiam os olhos. Lambruscco, Grasppa, licores, vinhos diversos que lhe molhavam a boca. Certo dia bebeu tanto que saiu amparado por dois colegas, que diziam, rindo: Brasile, Brasile. Attenti al veleno! . E ele ia cantando sambas pela madrugada. Morava com um italiano, um espanhol e um inglês. O inglês, com tatuagens e piercings, se tornou o companheiro de farra. Estavam em Napoles, a máfia comandava e o acesso aos narcóticos foi bastante fácil. O pó branco que tinha experimentado na França foi consumido novamente, no banheiro do restaurante, num fim de semana de movimento na casa. Emburrado, não foi trabalhar os últimos dias de contrato e embarcou para a Inglaterra. Jogo rápido na terra da Rainha, não gostou do fish`n`chips. 8 meses na Europa e cansou-se. Havia a cultura, havia lugares bonitos para tirar fotos, mas já tinha aprendido o que queria, não queria ver a Monalisa, nem as obras de Van Gogh. Por último, lhe recomendaram passar uma semana em Amsterdam, o que se tornou 4 dias. O corpo não aguentou tudo aquilo e dormiu 3 dias seguidos. Queria se especializar em algo novo. Tinha que provar novos sabores, novos cheiros, novas texturas. A Ásia foi o destino. Era tempo de novas experiências.

Em Bangcoc sucumbiu aos encantos de uma morena dos olhos puxados que lhe fez a massagem mais espetacular da sua vida. Na Malásia visitou o edifício mais alto do mundo e mandou um postal para a mãe: Olha eu aqui mãe! Eu disse que chegaria e cheguei: Topo do mundo!. Cruzou fronteiras, foi ao Paquistão, de trem, e provou do melhor haxixe. Viajou agarrado na calda de um cometa. No Tibete, uma maconha selvagem, 5.000 metros de altitude. Em Bali, festa rave, LSD-25 direto na pupila. Bebidas fermentadas das mais diferentes maneiras. Aquela vida era o que sempre sonhara, liberdade e curiosidade, experiências e descobertas. Toda a mística e mistérios que o Oriente lhe oferecia ele desfrutou. Na Índia, enlouqueceu do paladar e do espírito. Um guru, no meio da rua, lhe pegou pela cabeça, olhos dentro dos olhos e num inglês precário disse: Careful with the the sea, sailor. The wave may be large to much for your boat. Ele pensou que tinha sido a pimenta, mas a cena foi tão arrepiante que aquilo ficou marcado nele e nem mergulhar no Ganges, onde todos se banhavam, ele teve coragem. Os dias foram passando, ele esquecendo disso pelo caminho, continuou e provou gafanhoto na China, cachorro na Coréia, cobra no Vietnã. A temporada européia tinha rendido bem. Chegou ao Japão. Ohayou Gozaimasu, diziam no saguão. Ao desembarcar em Kyoto, observou que tudo aquilo até agora tinha sido pouco perto dos luminosos e do agito nipônico. Fez um tour gastronômico por aquela cultura tão distante, distinta. Parou em Osaka. O domínio de diversas línguas e gestos o ajudaram de certo modo na hora da hospedagem e da comida. Misturou francês com inglês para pedir um quarto, português com o arranhado japonês para conseguir informações. Entrou numa viela e bebendo saque (cachaça do olho puxado, pensava ele), assistiu pela TV um cozinheiro renomado fazendo fugu, lascas de baiacu. Com o arranhado idioma que entendia viu que apenas profissionais poderiam fazer aquilo, que a carne era venenosa e o corte tinha que se preciso. Balela, pensou. Japonês de piru pequeno. Saiu trôpego do restaurante, de manhã cedo já e foi direto numa peixaria. Iria provar ao mundo que as fronteiras da cozinha eram imaginárias, tanto em limites como na cabeça. Que qualquer coisa era permitida naquele território.

Comprou dois peixinhos, inflados, dum senhor baixinho, de cabelos brancos e óculos. 5 da manhã e saiu agradecendo: Arigato, mister roboto!. Foi tropeçando rumo ao albergue, pequeno, um quartinho, uma mesa, um colchão e a mala, com o estojo ganho do pai num longínquo Natal. Tinha incrementado algumas facas, e claro, a experiência desse tempo todo. Com um sorriso tolo no rosto que o saque provocara, começou a operação no pescado. Foi para a cozinha do mesmo, silêncioso, estrangeiros dormindo, esgotados com o jatlag. Limpou o peixe, a faca escorregando, ele buscando o ângulo certo. Tirou as entranhas, jogou na pia e acendeu um cigarro. Os esporões do peixe levaram um drible digno de craque pelos dedos embriagados. A fumaça subindo, atrapalhando a visão, a bebida na mente e ele manobrando a faca, o peixe como o empadachim empunha a espada frente ao adversário. Finalizou. Pegou um prato, fez um barulho tremendo, observou que mesmo assim a frágil atendente dormia na recepção.  “Vou comer tudo e dormir que nem um boi. Falando em boi, amanhã vou comer aquela porra de kobe beef“. Organizou as lascas no prato, decorou com wasabi de qualidade, hashis entre os dedos. A primeira lasca, meio desorientado, foi para a boca. Deu uma, duas, três mordidas. Engoliu. Há! Tô vivão! Vamo que vamo!. Pegou um pouco de água da torneira e bebeu. Sede etílica. A segunda lasca. Uma, duas, três. Ao final da terceira, sentiu os músculos contraírem. O olho vidrou no vazio. Zen. A japonesinha miúda acordou com o barulho do corpo desabado. Ele conseguiu ouvir os passos chegando na cozinha, viu os pés se aproximando, rentes e com as mãos na garganta pediu ar. Esta foi sua ultima visão. Ela, gritando para acordar os outros hóspedes, ainda tentou algo, mas quando percebeu os restos do peixe dentro da pia viu que de nada adiantaria. Com corpo envenenado pela toxina, o diafragma duro que nem titânio e a garganta vedada, imóvel, ele morreu, estirado no chão com a cabeça roxa. Sem ar. O tsunami foi demais para sua canoa.

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